Julio Reny: Histórias de amor e morte

Julio Reny em 2015 | Foto: Félix Zucco
Histórias de amor e morte foi o nome escolhido para intitular a biografia de um dos maiores nomes (se não o maior) do Rock Gaúcho: Julio Reny. A biografia é assinada por Cristiano Bastos, um dos co-autores da "bíblia do Rock Gaúcho", Gauleses Irredutíveis. Bastos que é formado em jornalismo, já foi redator de importantes revistas do meio musical, como a Bizz e a Rolling Stone, recentemente decidiu mergulhar no mundo das biografias musicais tendo sido responsável também pelas biografias de Flávio Basso e Nelson Gonçalves e recentemente está em fase de conclusão do livro/guia: 100 Grandes Discos do Rock Gaúcho. 

Nesta biografia, em questão, o próprio Júlio é quem narra (em primeira pessoa) toda a sua história, recheada justamente de "Amor e Morte". O livro foi lançado em 2015, pela Editora Artes & Oficios e recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura no mesmo ano. Em 2016, tive a sorte de ser vencedor de um sorteio no Facebook. O prêmio era um exemplar do livro e do DVD "Júlio Reny & Os Irish Boys - Ao Vivo (Marquise 51)". Assisti o DVD assim que chegou em minhas mãos, porém não tive coragem de começar a ler o livro. Havia lido algumas matérias que saíram na época, na qual diziam que a história era tão sincera que chegava a doer. E por algum momento sentia que não estava pronto para entrar no universo de Julio Reny.

Para mim, que desde jovem me interessei pelo Rock Gaúcho da época: Acústicos & Valvulados, Bidê ou Balde, Tequila Baby, Cachorro Grande, Vera Loca, etc, etc... era comum ir aos poucos desbravando o underground da música gaúcha. Aos poucos você descobre que existe um submundo incrível e instigante que habita o lado não comercial da música. E o Rock Gaúcho é, por natureza, underground! Assim comecei a ouvir e conhecer bandas (tanto da região metropolitana, quanto do interior) que são fantásticas. Porém, ouvir Julio Reny ainda me causava estranheza. Exceto "Amor e Morte" e "Não chores, Lola" (músicas de qualidade ímpar e com várias e várias regravações), sua obra musical me era estranha. E hoje, de fato, eu entendo. Eu finalmente entendi! Eu não conhecia o seu trabalho, eu não conhecia a inspiração da sua obra. Não fazia ideia dos demônios que o assombraram, das desilusões amorosas, dos fracassos, dos quase sucessos, das perdas, da batalha, da infância, da família. Finalmente esta pandemia, me fez ficar mais recluso e aquele livro na estante me chamou a atenção: Era a hora de mergulhar no universo de Julio Reny! E eu mergulhei! E eu quase me afoguei!

Claro que não tenho a intenção de contar toda a história do livro, acho que quem é fã de verdade do Julio, quem é fã de verdade de música, de rock, precisa ler este livro! Pra quem é fã de Rock Gaúcho, esta biografia então é fundamental, pra entender não apenas quem é Julio Reny, mas sim, como 90% das bandas gaúchas devem muito a ele. E não estou recebendo nem um centavo de ninguém pra falar isso. É de coração mesmo! Nunca uma história me deixou tão vidrado na leitura, eu por várias vezes me senti na pele do Julio, entendendo o que ele sentia e por várias vezes, as lágrimas quase rolaram.

Detalhes do livro, duas formações da Julio Reny Guitar Band | Foto: Divulgação
Vai aqui um breve resumo:

Julio, que já foi considerado o Lou Reed dos Pampas, chegou a ser na infância brigadiano mirim e goleiro do SC Internacional, Em sua juventude fora um exímio ladrão de discos (com mais de 300 furtos em lojas da cidade). Julio virou lendário em Porto Alegre. Ele era um famoso delinquente/brigador de rua, conhecido pela alcunha de Pé na Cova. Segundo ele: "O Pé na Cova nunca foi derrubado, nem por caras que tinham o triplo de seu tamanho!". Logo depois, após uma desilusão amorosa, foi internado em um hospital psiquiátrico. Foi ator de teatro e de cinema, com participação em importantes longas gaúchos, como Deu pra ti anos 70 e Verdes anos. No curta Vicious, é protagonista na pele de Sid. No teatro conheceria sua primeira mulher, Jaqueline, mãe de sua primeira filha, Consuelo. Para sua primeira banda Uma Canção nas Trevas, Julio compôs o repertório inteiro de 10 canções no curto período de um mês. Grande parte destas canções ele gravaria em 1982, na fita Último Verão, seu primeiro e cultuadíssimo trabalho de estúdio. Bastante influenciado pelo período que passara internado no hospital. Logo, aqui no blog, irei falar especificamente de cada trabalho de Julio. 

Julio foi importantíssimo para o desenvolvimento musical do rock gaúcho dos anos oitenta. Sua casa na Santana, tinha uma garagem completamente equipada com aparelhagem de som, que serviu de ensaio para várias bandas que estourariam anos depois, como Replicantes e Engenheiros do Hawaii. Julio também alugava seu equipamento para as casas de shows da cidade. Em 1984, cria a banda Os Topetes que teve curta duração, mas deixou alguns registros, como "Ivone" (lançada na Coletânea Zona Mortal) e em 1985 ao lado de Edu K, Freddy Lamacchia e seu irmão Paulo Renato, é formada a KM-0 e aqui aparecem pela primeira vez "Amor e morte" e "Não chores, Lola". No rock unificado, realizado no Gigantinho e que serviu como mostra para a seleção das bandas que iriam compor a coletânea Rock Grande do Sul, a KM-0 não fez boa apresentação, representando a primeira de tantas vezes que Julio fora rejeitado pelas gravadoras.

A Expresso Oriente, talvez a banda em que o talento de Julio Reny ficou mais explícito | Foto: Fernanda Chemale
Logo após, tem breve passagem como vocalista da lendária Urubu Rei, para depois formar a Expresso Oriente, banda que mostrou toda a qualidade do artista Julio Reny. Nesse mesmo período é convidado para ser locutor na Ipanema FM e seu programa Negras Melodias é sucesso de audiência. Também é responsável por ouvir as novas bandas e fitas demos que chegavam a milhões na rádio. Com muito esforço, o primeiro LP é lançado em 1990, época em que seu novo programa, Radio Cool é sucesso estrondoso! No ano seguinte forma a Guitar Band, com Frank Jorge e Carlo Pianta e logo após é tomado pelo espírito country formando o Bando Os Daltons. Na TV o seu personagem cowboy do deserto,do Programa Folharada na TV, é sucesso e da ideia nasce os Cowboys Espirituais, época em que Julio finalmente flerta com o mainstream. (Como disse, logo estarei trazendo todos os discos do Julio em detalhe aqui no blog). Depois disso, se reinventa, retoma sua carreira solo, e projetos paralelos, lança vários álbuns e em seguida vem a decadência, culminando com a perda de sua última esposa, proibição de ver sua segunda filha e a tentativa de suicídio...

Acho que uma das passagens mais tristes do livro também é referente ao seu aniversário de 50 anos. O Jornal Zero Hora chegou a publicar uma página inteira no Segundo Caderno e o show que aconteceu no Bar Café Verde (seu reduto em meio a eminente decadência em sua vida) teve inclusive a presença de Tatata Pimentel fazendo filmagens especiais para o seu programa. O local porém era um muquifo, por mais que estivesse lotado, com pessoas do lado de fora se esgueirando para acompanhar o show, não é digno (sempre na minha opinião) de ser o local em que Julio Reny fez o show de seus 50 anos! Mostra inclusive a falta de valorização que este artista sempre teve! Pra mim é inconcebível que uma lenda do Rock Gaúcho tenha comemorado uma data tão importante num local tão pequeno e sem história. Com tantos locais importantes para a cena em Porto Alegre, acho que Julio Reny merecia algo melhor.

Cristiano Bastos e Julio Reny em sessão de fotos para o lançamento do livro | Foto: Giovani Paim
Apesar de ter este blog (como uma extensão do canal) nunca fui de escrever, mas logo após terminar a leitura do livro, tive uma vontade imensa de escrever aqui e também de escrever uma carta para o Julio. Uma carta com alguns anos de atraso, mas com a franqueza de quem leu sua história e tem uma vontade imensa de lhe dar um abraço. Julio Reny, pra mim, passou de um estranho para um dos mais notáveis artistas que este Estado viu nascer. É inacreditável que sua obra tenha passado despercebida até hoje. Fico me perguntando quantos artistas gaúchos não tem, até hoje, sua obra devidamente reconhecida? Carlinhos Hartlieb, Fughetti Luz, Bebeco Garcia, Carlos Eduardo Miranda, Mutuca, Flavio Chamine, etc, etc, etc... Está mais do que na hora de reconhecermos estes talentos, se possível ainda em vida!

Enfim, durante a leitura sempre que uma música em especial era citada, lá corria eu para ouvir e entrar/entender o contexto. Logo após o fim do livro, então, cai de ouvidos em sua obra completa. E que obra! Julio que tem 11 álbuns de estúdio oficiais, 7 deles solo (um em companhia da Expresso Oriente e outro com Os Irish Boys), 3 com Os Cowboys Espirituais e 2 com o projeto Histórias do Rock Gaúcho. Mas após uma sequencia grande de lançamentos, Julio andava retirado. Bola 8 (2010) traziam as últimas notícias do bardo, fora eventuais apresentações solo e com os Cowboys Espirituais. O livro veio para dar um gás na carreira de Julio, para o colocar "novamente no jogo", como relatou em uma das entrevistas pós lançamento.

Deste então, saiu o EP Sessões Solitárias e o DVD Ao Vivo no Estúdio Marquise 51, acompanhado neste último pelos Irish Boys e recheado de participações especiais. De seu trabalho solo, o single "Yasmin" (2018) e a coletânea "O homem que amava as mulheres" (2018), que reúne músicas de diferentes épocas de sua carreira, dedicadas à mulheres com quem Julio se relacionou, incluindo um cover de Al Green para "Let's stay together". Com os Cowboys espirituais foi lançado os singles de "Ela foi para Paris" (2019) e "Você é tudo o que eu quero" (2019), versão do clássico dos Garotos da Rua, com arranjo sensacional criado por Julio. 


Contudo a música que mais me chamou atenção desta última leva é o single "Yasmin". Lançado em 2018, ele, para mim, é um desfecho dos últimos acontecimentos narrados no livro e igualmente triste. A melancolia é presente logo no início quando canta: "tinha perdido minha mãe e um grande amor...".


No cinema, a boa notícia que chega é que sua vida e obra vai virar também um documentário. Com a direção de Fabrício Costa e Tamires Kopp, o documentário com o nome de Amor e Morte em Julio Reny, tem co-produção da Reverb Filmes e Terra Mar filmes e está em fase de captação de recursos. A ideia dos produtores é terminar as filmagens ainda em 2020 e lançar no início de 2021. Segue um teaser, que já mostra algumas participações, incluindo depoimentos de Joarez Fonseca e Claudinho Pereira:


E você que não o conhece, ou conhece brevemente, busque ler o livro, busque assistir o documentário, procure por Julio nos serviços de streaming, busque adquirir os discos, ouça as músicas, veja suas antigas apresentações, tem muito material disponível na internet, vasculhe o YouTube.
Quisera eu ter a honra de ter o contato do Julio e conversar com ele brevemente. Tenho tantas coisas para lhe dizer, tanto para lhe perguntar. Confesso que seu visual recente me deixa preocupado, acho que finalmente o peso da idade, das decepções e de seus tantos abusos começou a lhe derrubar, fora os tantos problemas de saúde mencionados por ele no livro. Espero, porém, que vivas por muitos anos e que tenha saúde para levar a vida adiante. Quero muito te conhecer! Seguimos Fortes Julio!

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